MULAMBO JAZZAGRÁRIO (LP)

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LP MULAMBO, de MULAMBO JAZZAGRÁRIO 

Foram precisos séculos e séculos de uma refinada elaboração em torno das sonoridades que arvoram do antigo Sertão Carioca, para que pudesse nascer esta obra-portal, trabalho que gosto de chamar de comunitário e que é, antes de tudo, um documento que faz reverberar os ecos de uma cena onde a música instrumental constituiu-se o genuíno verbo. 


Aqui borbulham a floresta, a cachoeira, a milícia e o tráfico, tudo isso encontrando o mar e fazendo nascer agrupamentos artísticos que podem ser considerados dos mais produtivos da cidade. Frutos de um esquecido velho oeste, os artistas desta cena não só atuam e produzem por meio de coletividades, como também são conscientes das glórias e consequências trazidas dos antigos laranjais de semeaduras coloniais que há muito tempo adornaram as fronteiras de seus territórios. 


Andarilho, Fernando Grilo saltou do seu entorno e circulou pela cidade, inquietando-se e transmutando o jazz na Vila Aliança, uma favela de Bangu. Articulou temporadas de shows no Viaduto de Realengo, intuiu seu jazz agrário no meio da favela de Manguinhos - sua terra de lembranças infantis, junto ao morro do Jacarezinho, num ir e vir que mais tarde seria uma de suas mais fortes características: um espírito em eterno trânsito. Ainda muito novo, alçou voo para fora do Rio de Janeiro e no caminho deixou os nomes dos seus parceiros musicais, assim como fez outros mais. O resultado de suas experiências de jovem, negro, cheio de vida e solto no mundo, aos 20 anos, foi este disco, onde Grilo fez circular seus temas e ventar suas bandeiras, fez sentir suas ebulições através de alianças musicais, residências artísticas e parcerias que já vinha costurando em sua terra natal. Essa era sua prática: aglutinar talentos, reunir gerações de artistas, criar e recriar até a liberdade abismal que permite a plena geração de futuros. Essa prática o tornou, de algum modo, um símbolo da resistência cultural suburbana, através de um enfrentamento que buscava mudar o Brasil por meio da expressão musical instrumental. Fernando Grilo reconhecia o instrumento como uma arma. 


O que aqui se anuncia são apenas 13 minutos de uma força motriz que sensivelmente faz o andamento do corpo ganhar outros contornos: de repente, a audição nos leva tanto a um movimento de fluxos experimentais que brota do caos da região da Sé - no populoso centro de São Paulo, lugar onde Grilo tocou exaustivamente sua flauta para os transeuntes -, quanto aos perigos guardados nos cofres das grandes mansões que o espremiam pela cidade. Avistamos a janela do seu quarto na paisagem bucólica de Campo Grande e os desejos de ir além daquela pequena igrejinha conselheira. Provamos ainda o gosto de uma ode à planta de poder ancestral da qual Grilo era devoto. Sentimos paixão pelas histórias dos grandes músicos que saíram da Fábrica Bangu, assim como das histórias de seus herdeiros. Por fim, vibramos com o free jazz que nasce do tradicional 397, ônibus que percorre a Avenida Brasil pelas madrugadas, de modo alucinado a caminho do sertão. 


Essa breve viagem se firma feito um prenúncio ao lado B do disco, onde os poderes de Djalma Corrêa -  em uma de suas últimas contribuições à música brasileira - Carlos Malta e dos filhos da Zona Oeste Instrumental trazem invocações de um registro ao vivo na V edição do Festival Instrumental Mulambo Jazzagrário, fruto de uma homenagem a Grilo. A ZO Instrumental é uma reunião de jovens musicistas da região, todos parceiros de Grilo, todos membros fundadores da família Mulambo, aqui recriando um tema inédito deixado por ele, feito em homenagem a minha pessoa, sua viúva e companheira. Esta faixa atesta, portanto, que embora aparentemente solo, o álbum trata-se na verdade de um enredo que narra, por meio de símbolos e elementos sensíveis, os mistérios que nutrem a verve das florestas, favelas e das pistas ao oeste carioca. Algo sobre memória, celebração e continuidade, elementos demasiadamente caros aos artistas homens negros no Brasil.


Ao final dessa toada, sentimos o disco ganhando ares de gurufim, já que se trata do lançamento de um vinil póstumo, tendo Fernando Grilo partido deste plano apenas um ano após o lançamento. Ele falece por negligência da saúde pública no Recife. Na ocasião, havia feito viagem para gravar com Naná Vasconcelos um tema seu dedicado a Èù Òrìà. Grilo parte ao fim de uma jornada que o levou a sair do sudeste para percorrer estradas do centro-oeste e do nordeste brasileiros. Levava esse disco na mochila, exemplares artesanais em formato CD com capas caseiras impressas por painho e passou por quilombos, comunidades ribeirinhas e teve seu último momento de festejo e doação de energia num lar para meninos na Ilha de Itamaracá. Grilo semeou sua imaginação pelo caminho, e a sua música - este álbum sobretudo, nos diz muito sobre um sentimento de ritualização de esperanças. 

Seus passos foram longe, tão longe que me levam à antiga sentença proverbial Yorubá, que solfeja sobre a personalidade alargada de Èù:

 “Aquele que muito anda, avoa!”  
Fernando Grilo vive!

Nathalia Grilo
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